quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Sinfonia em branco




Resenha do romance Sinfonia em Branco, de Adriana Lisboa (2a. Ed. Rio de Janeiro : Objetiva, 2013), vencedor do Prêmio José Saramago.



O amor era como a marca pálida deixada por um quadro removido após anos de vida sobre uma mesma parede. O amor produzira um vago intervalo em seu espírito, na transparência dos seus olhos, na pintura envelhecida da sua existência. Um dia, o amor gritara dentro dele, inflamara suas vísceras. Não mais. Mesmo a memória era incerta, fragmentada, pedaços do esqueleto de um monstro pré-histórico enterrados e conservados pelo acaso, impossível recompor um todo íntegro. Trinta anos depois. Duzentos milhões de anos depois.”(p. 15-6)

Tomás entra em cena de forma enigmática. Um homem que aguarda a chegada de Maria Inês, irmã de Clarice. Maria Inês era “uma mulher que a memória sempre vestia de branco e de juventude”.

Logo no primeiro capítulo, Adriana Lisboa, de forma lírica e provocadora, apresenta-nos Tomás, Clarice e Maria Inês. As duas últimas são irmãs. Maria Inês casa-se com João Miguel, primo de segundo grau, forma-se em medicina e permanece morando no Rio. Não retorna mais para Jabuticabais, onde nascera e crescera. Clarice, após a morte da mãe e do pai, volta para a fazenda e ali permanece, vizinha de Tomás.

Dois vizinhos que se tornam amigos e confidentes nas madrugadas frias e insones. A conversa geralmente orbita em torno de Maria Inês e a ansiedade do reencontro com a visita que se torna próxima.



Clarice casou-se com Ilton Xavier, outro vizinho da fazenda de Afonso Olímpio e Octacília. Clarice trazia consigo o queloide nos pulsos nus resultado de uma tentativa frustrada de cortar os punhos.

Um dia, a morte. Clarice sentiu mais uma vez com as pontas dos polegares as duas cicatrizes gêmeas, uma em cada punho. E sorriu um sorriso involuntário e triste, um sorriso sem mistérios, ao pensar que afinal acabara sobrevivendo a si mesma.”(p. 35-6)

Clarice era menina obediente e submissa; Maria Inês carregava uma vivaz insubordinação, gostava de desafiar o proibido. O temperamento de Clarice talvez tenha contribuído para o ocorrido, e ela carregara consigo a culpa pelo fato, ainda que de forma velada.

Poucos anos haviam sido suficientes para escurecer Octacília, para nublar seus olhos de águas-marinhas azuis e engravidá-los de tempestade, para deixá-la parecida com uma madrugada fria e insone. Seu humor escurecia a cada dia, e não havia para Clarice modo de deixa de sentir-se ao menos um pouquinho culpada. Tinha certeza de que a mãe não a amava. Talvez porque tivesse feito algo? Alguma coisa muito feia e censurável de que nem mesmo se lembrasse?”(p. 39)

Certo dia Octacília decide enviar Clarice ao Rio de Janeiro para morar com uma tia solteirona e ali passar uma temporada de estudos. Octacília e Clarice não eram próximas e uma semana após a decisão de enviar Clarice ao Rio, Octacília chama a filha no meio da noite para ver a lua. Conversam pouco, mas resta a impressão de que Octacília culpa Clarice pelo ocorrido.

Entre elas não havia confissões, não havia trocas de carinhos, mas muitos e longos silêncios. Desde sempre. Sobretudo por isso Clarice surpreendera-se com aquela iniciativa, mandá-la para o Rio de Janeiro. Pois se tudo era tão subterrâneo, se tudo era tão secreto.”(p.92)

O ano era 1965 e Clarice permaneceu no Rio por cinco anos. Nestes anos, Clarice tenta esquecer e moldar uma nova Clarice. Dali saiu diretamente para igreja de Jabuticabais onde lhe esperava no altar Ilton Xavier. O casamento durou 6 anos e numa manhã qualquer, Clarice partiu sem dizer nada. Sem rumo, Clarice vive de bicos no interior até chegar ao Rio, onde mergulha nas drogas e é “adotada” por um namorado traficante. Passado algum tempo, ela tenta o suicídio.



Tomás é um personagem coadjuvante, à margem das mulheres da trama, mas cuja história traz consigo um caráter de homem-objeto, um acessório de Maria Inês. Esta, por sua vez, parece saltar pelo mundo em busca de um amor verdadeiro, mas contenta-se com a superficialidade da variedade. Primeiro, Tomás. Depois Bernardo, um colega de turma que se transforma em cantor lírico e que coleciona namoradas em diversas cidades do mundo, como um marinheiro nômade e sem residência fixa. Quando está no Rio, protagoniza encontros sexuais com Maria Inês, onde ela se submete a ser mais uma na coleção de Bernardo Águas. João Miguel é o marido, com queda por jovens bonitos e moças jovens. Maria Inês nota isto num café em Veneza, ponto de partida para uma encruzilhada em seu relacionamento.

Mas Tomás parece ser o mais sincero em relação aos seus sentimentos. Aceita ser o “outro” de Maria Inês. E por ela espera durante quase toda a vida. Em certo trecho, a autora ao narrar a primeira vez em que Tomás avista Maria Inês na sacada do apartamento do Flamengo, na rua Almirante Tamandaré, e passa a desenhá-la de forma obcecada, sua vida termina antes de começar (“A vida de Tomás que terminou antes de começar.” – p. 149).

Tomás insiste num amor ao qual Maria Inês se recusa a abraçar. “Mais tarde ela diria por favor, Tomás, não se apaixone por mim, e ele perguntaria, sorrindo, por quê?, ao que ela responderia porque eu não estou apaixonada por você. Naquele momento, porém, e mesmo depois da revelação da não paixão, Tomás se assegurava: seria possível. Teria de ser possível. Porque o amor dele seria talvez suficiente para dois, como um prato farto num restaurante. Suficiente para alimentar duas pessoas, um desejo em dobro capaz de arcar com o peso de dois destinos, inclusive, e irmaná-los.”(p. 157)

Tomás insiste e reclama quando Maria Inês não lhe informa a morte de Octacília. Quando Afonso Olímpio morre, Tomás vai a Jabuticabais, conhece Clarice e nota os olhos secos das duas irmãs no velório.

Estavam secos.
Como estavam também os olhos de Maria Inês: secos. Estranhamente secos, mais secos que os olhos das pessoas quando estão secos. E a ausência de lágrimas pesava naqueles olhos marejados de falta, marejados de silêncio.”(p. 237-8)

Tomás não pergunta, não inquire, não invade. A sua presença no velório já era uma invasão. A invasão de um segredo que é compartilhado num único olhar entre Clarice, Maria Inês e Tomás. Ele de nada sabia, mas desconfia de algo muito bem guardado pelas irmãs.

Após a morte do pai, Maria Inês fica noiva de João Miguel e comunica a Tomás. “Uma paixão muito jovem. Que dividiu a existência de Tomás em duas metades, em dois hemisférios. Em dois períodos: um a.M.I. e um d.M.I.”(p. 241)

Maria Inês foi embora, mas não definitivamente. Voltou três meses depois, e continuou voltando ao longo dos dois anos seguintes. Uma Maria Inês clandestina que mais tarde haveria de se culpar e acreditar que o belo Paolo em Veneza era somente uma espécie de troco.”(p. 243).

Ao final, descobre que Eduarda, a moça que tem os seus olhos transparentes, é sua filha. 

Maria Inês, a protagonista, parece ter medo do amor, da entrega, do sacrifício que um relacionamento exige. João Miguel, o primo que virou marido, é o companheiro conveniente, conquistado sem esforço. Tomás, o devotado e apaixonado amante, é posto de escanteio, quase esquecido, mas Tomás não teve medo de arriscar, de abraçar a paixão que lhe assolara. Maria Inês, por sua vez, segue sua vida sem se amarrar, sem criar fundações definitivas e mais profundas. Sim, Maria Inês tem medo do amor, medo de encontrar o amor verdadeiro e duradouro.



Havia uma pedreira perto da fazenda e Maria Inês e Clarice sobem ao alto da pedreira num dia de junho, após a tradicional festa junina.

Maria Inês sentiu a pele da nuca eriçar-se, como se ela fosse um gato, e perguntou com a voz forte para que ele pudesse ouvi-la de onde estava: o que houve? O que veio fazer aqui?

Não fale assim com ele, Clarice censurou.

As distorções dela eram filhas das distorções dele. Claro.

Diante de Maria Inês e de Clarice, plantado no meio daquelas pedras como um fantasma, os cabelos ralos esvoaçando, Afonso Olímpio viu o rosto das coisas que ele poderia ter feito, mas não fizera. E também aquele sombrio das coisas que ele não deveria ter feito, mas fizera, ainda assim. Um homem carente da melhor parte de si mesmo, daquilo que agora pudesse sustentá-lo de pé.

Você acredita em inferno, pai?, Maria Inês perguntou.” (p. 288-9)

Ela surpreendeu-se por ouvir-se dizendo aquela palavra, pai, que foi a última que disse a ele e a última que ele próprio ouviu. Depois, muito levemente, empurrou.” (p. 293)

O tão desejado esquecimento se resume a um momento em que Clarice vê o pai despencar do alto da pedreira. E a partir daquele momento, inicia o processo de cicatrização.

O Esquecimento Profundo não existia. Clarice sabia. Nunca fora capaz de esculpi-lo – de reivindicá-lo para si. Também não existia algo como uma lembrança inócua, uma ferida cauterizada. Um bicho sem as presas e sem os dentes, sendo, apenas. A pacificação do passado com tudo aquilo que ele comportava. Existia uma cidade na memória de Clarice, uma cidade destruída pela guerra ou por um terremoto. Agora, havia construções novas e o entulho já fora removido e os mortos, enterrados – porém, haveria como reverter aquela memória? Como atualizá-la?” (p. 303-4)


Nenhum comentário: