quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Novos atalhos para velhos caminhos

Foto: portaldotransito.com.br


Se queres bom conselho, pede-o ao homem velho.”

O ditado popular associa a velhice à sabedoria dos anos vividos, dos fatos presenciados, das músicas ouvidas, das transformações sentidas. O bom e lúcido idoso é um poço de bons conselhos, simples considerações sobre a longa estrada da vida percorrida.

Quando criança, passava horas ouvindo minha tia avó contar sobre a infância, sobre uma São Paulo querida e romântica, imaginada em branco e preto, em tempos de bondes puxados por mulas, por ruas de terra e depois de paralelepípedos, com meninas com fitas no cabelo, vestidos rodados, sapatinhos de verniz. Uma cidade provinciana, quase bucólica em alguns bairros, onde não existia telefone, televisão, congestionamento, poluição, ruído em excesso, mas que teimava em se movimentar, em crescer, em autoproclamar-se a locomotiva do Brasil. Non ducor, duco, reza o lema no brasão da velha freguesia erguida nos campos de Piratininga.

Ela não tinha medo da morte. Dizia, com serenidade, que esperava apenas a hora que fosse chamada para descansar. A vida tinha outra ritmo e não me lembro com que idade ela faleceu, apenas me lembro que chorei ao receber a notícia.

A sabedoria, por vezes, é afogada pela teimosia, por hábitos arraigados e que são difíceis de quebrar e de mudar. Reparei nestes dias que idosos insistem em atravessar a rua fora da faixa de pedestres. Uma senhora quase foi atropelada ao cruzar no meio dos carros na Brigadeiro Luis Antônio e ainda se arriscar quando o semáforo abriu no contra fluxo. Outro, ao invés de caminhar alguns passos, corta a rua em diagonal, sem olhar e força uma freada brusca.

Estariam estes idosos tomados de um empoderamento tão forte que os faz se sentir imbatíveis, inquebráveis, indestrutíveis? Será que acham que a legislação que os protege também obriga motoristas de veículos a dar preferência a todos os idosos em qualquer lugar da via pública? Ou será que estão cansados e querem apenas pegar um atalho?

Preste atenção quando trafegar pelas ruas de São Paulo e veja se estou exagerando. Com a velocidade máxima reduzida, fica mais fácil notar estas atitudes que geralmente passam despercebidas.


Tomar atalhos novos e deixar caminhos velhos, diz um outro ditado popular. Talvez seja um bom momento para os idosos abandonarem os atalhos velhos no meio das ruas e adotarem um caminho novo pela faixa de pedestre.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Navegando pela escrita


Um livro com uma coletânea de textos de jovens escritoras (entre 10 e 15 anos). Os textos estão em português, inglês e espanhol, uma viagem por línguas e palavras e dialetos e pela criatividade.

Prestigie o lançamento deste projeto!

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Gotas políticas


Há uma proposta de reajuste de 78% dos salários dos servidores do judiciário. A presidente vetou a proposta. O Congresso pode derrubar o veto.

Com toda sinceridade, no momento atual, nenhum aumento deve ser concedido a qualquer servidor público. O momento exige corte de despesas. Por que só os funcionários do setor privado devem perder o emprego e amargar o não rejuste de salários?

Se não gosta da remuneração do servidor público, pede demissão - ops, exoneração - e vem pro mercado competir. Venha ver como é a vida de um empregado do setor privado, sem quinquênio, licença prêmio, jornada de 6 horas, abonos, feriados que não constam do calendário dos demais mortais como o dia da Justiça, dia do funcionário público, recesso de 20 dias no final do ano....ufa, até cansa de pensar em tanto benefício. #prontofalei

*  *  *  *  * 



Algumas situações do mercado empresarial são realmente curiosas e a forma como as empresas enfrentam crises reflete um bocado do caráter de seus líderes, que por sua vez reflete a cultura e a mentalidade da empresa.

A Volkswagen viu-se envolvida num gigantesco escândalo diante de órgãos ambientais dos EUA, pois seus veículos estavam equipados com um software que maquiava a emissão de poluentes dos motores a diesel. Resultado: um pedido de desculpas de seu CEO e a sua renúncia. Transparência diante do erro e punição dos envolvidos, que certamente sofrerão processos pelos danos causados.

A Petrobras, nosso dinossauro estatal do petróleo, viu-se envolvida num fantástico escândalo de corrupção e propina, tudo descoberto na Operação Lava Jato. Alguns personagens já foram condenados, outros estão presos, e outros ainda respondem criminalmente pelos seus atos.

Levantamento feito pelo Jornal Valor Econômico identificou que a Petrobras já gastou em torno de R$ 390 milhões apenas com os processos judiciais e pareceres jurídicos para se defender - e defender seus diretores - das acusações e ações de indenização.

Perto de R$ 1 bilhão já foi recuperado e que havia sido desviado dos cofres da empresa.

Qual a conduta de seus diretores e presidente, na época, Graça Foster? Nada. Fingir que estavam fazendo algo, fingir que não sabiam de nada, fingir que medidas estavam sendo tomadas, afinal o que importava era preservar seu cargo e o salário. A postura da diretoria da Petrobras é lastimosa e indicativa de como se trata a coisa pública no Brasil.

Não achava necessária a privatização da Petrobras, mas depois do que se encontrou naquele antro de corrupção e fonte de abastecimento do caixa de um partido político que saqueou a empresa (empresa pública repita-se!), estou convencido que a privatização da Petrobras seria uma ótima forma de cobrir as receitas necessárias para o ajuste fiscal do Levy.

Se bem que as ações da Petrobras estão tão desvalorizadas que vamos precisar esperar um pouco antes de privatizá-la, caso contrário, ninguém vai querer.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Epígrafe - XXXIV



"A pequena alameda continuava descendo até uma clínica que se encontrava no meio do parque. Tinham parado de falar, mas ouvia o rumor das rodas da cadeira no cascalho. Gostaria de ter se virado, mas não conseguiu. A coisa mais linda do mundo. Disse uma menina careca em uma cadeira de rodas, conduzida por uma enfermeira. Ela sabia qual era a coisa mais linda do mundo. Ele, ao contrário, não sabia. Como era possível que na sua idade, com tudo aquilo que vira e conhecera, ainda não soubesse qual era a coisa mais linda do mundo?"

(Antonio Tabucchi. O tempo envelhece depressa. trad. Nilson Moulin. São Paulo : Cosac Naify, 2010, p. 47)

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Fantasma


www.emiliesugai.com.br - Cinema de Sombras


Não me tenhas como um fantasma do passado a assombrar teus dias, tuas tardes preguiçosas, tuas madrugadas insones, tuas noites solitárias, tuas manhãs de ressaca. Não sou eu a desfazer os espirais de fumaça que fluem de seus cigarros, assoprando as belas esculturas que se desenham no ar. Sei que está só e te observo de longe, em pensamentos e desejos, com a boca costurada pela censura que me impusestes. Não me procures mais, chega! O grito escrito num email saltou do fundo da garganta e me ensurdeceu. Calei-me como pediste por quase dois anos, mas uma serena vontade me consome e sou tomado pela impotência de não resistir. Quero te escrever, mas temo que seja tido como um fantasma, daqueles esqueletos do fundo do armário, esquecidos e que quando revelados assombram, causam taquicardia, suores, um forte aperto no coração.

Não quero ser um pesadelo, não quero tirar teu sono, nem tua paz - se é que em algum momento nos últimos tumultuados meses atingistes a paz de espírito. Do jeito que te conheço, ouso dizer, sem medo de errar, que teu interior inquieto e ansioso, extremamente analítico jamais lhe concedeu a paz interior.

O mundo é muito turbulento para ti. O mundo está em constante mutação, tanto o material como o espiritual e tentas captar tudo, usas do conhecimento para tentar atingir o impossível controle sobre o destino, sobre a razão e o mais utópico: sobre o coração e os sentimentos. Suas tentativas de negar e rejeitar o sentimento despertado, por mim confessado, foram em vão. Negaste de forma reiterada, acreditando que o silêncio me induziria ao erro. A negação se transformou em agressão verbal e escondida por detrás de um colete à prova de flechadas do cupido. Fingiu que estava intacta ao que fora despertado no seu âmago. Jamais acusaste o golpe e sei que és orgulhosa por demasia para reconhecer que se apaixonara por alguém que lhe faria fugir e correr e correr. A contradição posta lhe embaralhou o raciocínio e a filosofia foi escassa, insuficiente, não lhe dando os instrumentos para dissecar a sua própria alma e tomar de conselho a lição primordial: conhece-te a ti mesmo! 


Falhaste e me condenaste ao limbo das almas penadas, dos fantasmas do passado. Deixei de ser um sonho bom para me tornar um pesadelo dos mais traumáticos e inquietantes. Não sou um fantasma e não quero morrer como fantasma. Será que em algum momento do futuro, à luz do dia, o espectro se transformará de novo em um inofensivo amigo?

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Lançado conto em ebook





Lançado na semana passada, já está à venda na loja da Amazon o conto Taquaral,  escrito para o concurso do Globo e da Amazon, Brasil em Prosa. O conto só está disponível em formato de ebook.

O conto pode ser adquirido na loja da Amazon aqui.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

A poesia que nos falta




Eu leio poesia. Eu compro poesia. Eu não sou um consumidor de poesia, pois poesia não se consome, desfruta-se. Penso que a poesia é um convite à contemplação, a ultrapassar a superfície das coisas, um mergulho nas profundezas do cotidiano e dos sentimentos, da vida e dos objetos, da realidade que nos cerca. A poesia me transporta para o mundo da reflexão, do devaneio, da tentativa de melhor compreender este mundo.

Creio que nos falta poesia no dia a dia. Talvez você, meu caro leitor, perguntará onde existe poesia num metrô lotado, num engarrafamento de final de dia quando se está cansado a caminho de casa, numa notícia de jornal que reproduz a violência e a barbárie de crimes cometidos. Onde está a poesia deste mundo cruel?

Quem sabe, se olhássemos o mundo com um olhar poético, contemplativo, poderíamos ultrapassar a casca que recobre a realidade e penetrar mais fundo no transcendental. 

Outro dia, um amigo criticou de forma ácida o grande sucesso do momento, os livros de colorir para adultos. Para adultos? Quer dizer que criança não pode colorir aqueles desenhos elaborados? Lógico que pode, mas são planejados para adultos lidarem com o estresse. 

Curioso como a atividade lúdica, como o contato com a arte, ainda que de forma primitiva, seja utilizada como elemento terapêutico. A escrita já é usada como terapia, assim como a leitura. Agora, é a vez dos livros de colorir. O adulto dá um primeiro passo para ter contato com a arte visual. Digo primeiro passo, pois poderia sentar-se num banco em uma das galerias do MASP e contemplar Rembrandt, Picasso, El Greco, Goya, Modigliani, Monet, Manet...

Contemplar é mais trabalhoso do que simplesmente pintar com canetinhas e lápis de cor. Contemplar exige que se silencie o interior, que nossos sentidos estejam focados no objeto. A poesia faz isto, transporta-nos para o mundo da contemplação. Falta-nos poesia no mundo de hoje, mas quem sabe alguns não descubram que a Arte não é restrita a livros de colorir para adultos.


segunda-feira, 8 de junho de 2015

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A poesia de Matilde Campilho



Descobrir um novo poeta é descobrir um novo dialeto que traduz a realidade do mundo. Todo poeta tem o seu idioma próprio, uma forma toda peculiar de retratar, de descrever de forma inusitada o que é banal, o que é sublime, o que é importante, o que é profundo. Cada poeta usa traços e linhas e sombras e nuances para desenhar com palavras o que tantas vezes tentamos fazer sem sucesso.

Matilde Campilho poderia ser facilmente confundida com uma brasileira. A bela morena morou no Rio de Janeiro e passaria por carioca, não fosse o inconfundível – e charmoso – sotaque português. De cabelos longos e pele bronzeada, Matilde é uma jovem escritora, uma jovem poetisa que desponta no cenário das letras.

Participou do recente colóquio Minha língua, minha pátria, organizado pelo jornal português Público em conjunto com a Livraria Cultura. Matilde estará presente também na Flip deste ano.

Jóquei é seu primeiro livro, publicado no Brasil pela Editora 34. Não se surpreenda com os poemas em inglês, alguns poucos, misturados com um punhado de textos em prosa. A poesia conduz leva-nos a passear por Lisboa, pelo Rio de Janeiro e por cidades que poderiam ser tanto no Brasil, ou Portugal, ou qualquer lugar onde um caminhante atento observa tudo ao seu redor.


Há leveza na poesia de Matilde Campilho que parece escrever a poesia que todos gostaríamos de escrever. Trata-se de um elogio, antes que me entendam mal, a simplicidade é mais difícil de ser atingida do que pode parecer e a caixa torácica deve retumbar quando as palavras deitadas sobre o papel agradam à escritora. O leitor da poesia de Matilde descobre sua fascinação pelos números, pela ciência, onde parece indicar um discreto deslumbramento sobre os mistérios invísiveis do universo, transformando o DNA em poesia.





quarta-feira, 22 de abril de 2015

Matilde Campilho : Rua do Alecrim





RUA DO ALECRIM

Uma menina desenha uma estrela de cinco pontas
a esferográfica Bic na palma da mão de outra menina.
Chove, e mesmo assim o desenho não sangra:
é preciso muito mais do que certas condições
climatéricas para que o amor escorra.

Assisto a toda a cena e penso que esta visão,
real ou inventada,
é muito pior do que a verdadeira a bofetadas.

(Jóquei. São Paulo : Editora 34, 2015, p. 64)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Epígrafe - XXXIII


instagram @rbueloni


"O material do escritor é o alfabeto"

"O livro é uma máquina de nos fazer levantar a cabeça"

Gonçalo M. Tavares, no simpósio Minha língua, minha pátria, na Livraria Cultura, 11 de abril de 2015.

Mais sobre o bate-papo aqui.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Conto: Corra, corra!




CONTO: Corra, corra!


Fazia questão de acordar cedo todos os dias, exceção feita aos sábados, domingos e feriados. Nos demais, levantava-se pouco antes do nascer do sol de modo a estar na rua e ter a face acariciada pelos primeiros raios solares. Gostava de contemplar a luminosidade matinal, como uma cortina que se abre e revela o cenário do palco, a cidade que despia sua roupa escura, cenário conhecido mas que ganhava tonalidades e cores inesperadas conforme a estação do ano,  a bruma matinal, a maresia, o cheiro. A corrida era uma necessidade, uma forma de espantar a preguiça do corpo e punir a carne com esforço e sacrifício, para ao final desfrutar de uma descarga benéfica de hormônios.

O silêncio da manhã, da cidade ainda adormecida, instigava-lhe a imaginar as vidas ao seu redor, as pessoas que cruzava – algumas habitualmente – em caminhadas ou corridas na orla da praia, faça chuva ou faça sol, sem intempérie a detê-los. Era uma disciplina quase fanática, quase militar, um exército de viciados em atividade física. Se ela fosse um robô agiria igual, pensou alongando os braços e pernas antes dos exercícios. Hoje dispensara a música. Optara pelo silêncio de seu universo próprio, como fazia todo dia 5 de cada mês.

A dor se misturava com a nostalgia, a melancolia com a saudade, a raiva com a compaixão. Nestes dias, era um cadinho de sentimentos em ebulição. Sensações que beiravam a dor física. Passaram-se seis anos desde aquele dia de novembro, mas tudo permanecia vivo e ela se odiava por isso. Deveria ter morrido o sentimento. Ele deveria ter  morrido. Não bastava fechar os olhos. O coração não tem olhos, pensou. Deixou-se abraçar pelo sol, deu dois saltos para sair do transe que lhe arrastava sem rumo e começou a correr.

Março trazia a instabilidade de um mês de transição. As manhãs não eram tão quentes, menos úmidas que nos meses anteriores. Fim de verão com as águas de março, mas hoje o dia resplandecia com toda sua majestade.  O vento era leve e lhe beijava o rosto com delicadeza. Seu cabelo preso num rabo de cavalo balançava num movimento pendular e ajudava a marcar o ritmo das passadas. Precisava se concentrar no começo, até que o ritmo lhe dominasse o organismo e tudo ficasse cadenciado numa máquina azeitada. Respiração, passada, braços, batimentos, olhar altivo. O cronômetro acionado para registrar tudo na planilha de treinos. A disciplina era rigorosa. Ela riu ao pensar em quantos lançamentos fizera nas planilhas de treino, quantos minutos correndo, quantos quilômetros correndo, quantos momentos da vida foram passados ali à beira-mar correndo, delirando com a paisagem da cidade sonolenta, lutando contra seu segredo, esforçando-se por esquecer o que nunca esqueceria. A corrida era uma tortura prazerosa que lhe permitia momentos de plena solidão, de pleno esforço e luta, de dominação do corpo pela mente e imaginava que isto algum dia, lhe permitiria esmigalhar por completo o sentimento guardado.

Uma bicicleta passou buzinando e ela se distraiu, atrapalhou-se no ritmo da passada, não a ponto de cair, mas revelando-se desengonçada. Achava-se pouco ágil, pesada demais para correr longas distâncias, mas percorria diuturnamente os oito quilômetros da beira-mar, quatro de ida e quatro de volta, concluindo o treino com uma refrescante água de coco. Ao menos, a corrida lhe dera mais resistência, pernas firmes, pele viçosa, colesterol baixo e um tornozelo que por vezes fazia questão de lembrar-lhe que os 40 anos já haviam sido superados. Ela ria de si mesma. Não corria para ficar gostosa. Corria para ter a sensação de que tinha condições de fugir, de escapar da realidade, como se a corrida lhe condicionasse e lhe preparasse para um momento de reencontro e então ela correria e correria e correria, sem olhar para trás, sem hesitar, sem temer o coração e com total racionalidade.

Ela tinha medo do reencontro. Tinha medo de emails, de presentes, de livros, de textos, de cartas, de recados, de bilhetes, de telefonemas, se bem que telefonemas eram coisa do passado. Achava mais arriscado encontrar um recado no whatsapp. Tudo se rompera em determinado momento. De uma única vez, como arrancar esparadrapo. Ele insistira. Ela calara. Um ano se passou e ele continuava a mandar sinais de fumaça, sem insistência, de forma delicada e carinhosa. Ela foi firme. Um dia ele desistiu, ou assim, achava ela. No fundo, desconfiara que em algum momento inesperado ele reapareceria e então ela teria que retomar sua fuga. Tinha que estar preparada e treinada. A corrida era a solução. Tinha que correr. Tinha que fugir. Tinha que estar alerta. Dispararia como um cometa, um cavalo chucro a correr numa planície qualquer.


E todo dia 5 a tensão atingia níveis extremos de ansiedade. Ele nunca mais aparecera, mas o que será que o destino guarda, ela pensou. Será que teria coragem de fugir? Será que seria forte o suficiente para fugir? Ou o coração me trairia novamente? As dúvidas açoitavam seus pensamentos com pontadas firmes, como se estivesse presa ao pelourinho recebendo chibatadas pelo seu mau comportamento. A ternura de seu olhar seria um bálsamo para o corpo cansado e teimoso. Por que fugir? Por que correr? Pare de pensar e corra. Corra. Corra!


sábado, 7 de março de 2015

Vinicius de Moraes : Senhor, Eu não sou digno






SENHOR, EU NÃO SOU DIGNO



Para que cantarei nas montanhas sem eco
As minhas louvações?
A tristeza de não poder atingir o infinito
Embargará de lágrimas a minha voz.
Para que entoarei o salmo harmonioso
Se tenho na alma um de-profundis?
Minha voz jamais será clara como a voz das crianças
Minha voz tem a inflexão dos brados de martírio
Minha voz enrouqueceu no desespero…
Para que cantarei
Se em vez de belos cânticos serenos
A solidão escutará gemidos?
Antes ir. Ir pelas montanhas sem eco
Pelas montanhas sem caminho
Onde a voz fraca não irá.
Antes ir – e abafar as louvações no peito
Ir vazio de cantos pela vida
Ir pelas montanhas sem eco e sem caminho, pelo silêncio
Como o silêncio que caminha…


(Vinicius de Moraes. As Coisas do Alto. São Paulo : Companhia das Letras, 1993, p. 37)

 

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O "Paraíso" de Tatiana Salem Levy



Sabedor do novo livro de Tatiana Salem Levy, fui à Livraria da Vila da Lorena no início de dezembro em busca do livro. Acostumei-me a me adiantar às livrarias. Fico sabendo dos lançamentos pelos jornais ou pelos perfis dos escritores nas redes sociais e me antecipo ao mercado. Foi assim com os poemas de Fernando Pessoa declamados por Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli. Até agora a Saraiva ainda não tem o produto disponível e a maioria das livrarias ainda não recebeu o DVD. 

A vendedora me olhou com perplexidade quando perguntei sobre o livro. Ela parecia desconhecer a autora, um dos expoentes da literatura brasileira contemporânea. Foi consultar o terminal. O livro acabara de chegar. Estava na caixa no subsolo da loja. Comprei o primeiro exemplar do livro recém-chegado.

Um dileto amigo que me acompanhava e que é ávido comprador de livros (e leitor) me inquire:

- Você gosta tanto dela assim para comprar um livro sem sequer folhear e dar uma lida em alguns trechos? Você sabe do que se trata a estória?

Respondi afirmativamente às duas questões. 

Encantei-me com a prosa de Tatiana Salem Levy em "A Chave de Casa". O livro ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2008 por melhor autor estreante. A forma narrativa, o estilo, o despojo na escrita me cativaram. Virei fã e leitor fiel. 

Em seu novo livro, a escritora trata de temas sociais e volta a dialogar com a memória como forma de compreender quem somos. Tatiana parece indagar - através de seus personagens - sobre a importância do passado na formação do nosso caráter, na construção de uma personalidade que não é inovadora e inédita, mas um somatório de fatores familiares que são transportados de geração em geração ainda que de forma silenciosa e não deliberada.

Estou a digerir as impressões sobre a saga de Ana, protagonista de Paraíso. Parece-me que o novo livro é inferior aos dois anteriores, mas não tenho a certeza. Ana refugia-se num sítio em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro em busca de paz para escrever um romance histórico e em busca de isolamento para lidar com o potencial contágio de AIDS, após uma noitada irresponsável. O título pode se revelar contraditório, pois a calmaria da serra não espanta os fantasmas interiores de Ana. E ela desfia-os ao longo do romance.

A prosa leve de Tatiana é envolvente e o livro, que como a boa literatura brasileira não se tornará um best seller, vale a leitura. E a discussão. A esta discussão retorno em outro post.

PS: clique no tag abaixo para ler mais sobre Tatiana Salem Levy.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Epígrafe - XXXII



instagram @rbueloni


"La vida es un enorme álbum donde ir construyendo un pasado instantáneo, de colores ruidosos y definitivos."

Alejandro Zambra. La vida privada de los árboles. 4a. ed. Barcelona : Editorial Anagrama, 2014, p. 69-70.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Barquinhos

instagram @missuniversoproprio

Buscou um banco que estivesse sombreado por uma ampla copa de árvore e sentou-se à beira-mar, num recuo onde barcos repousavam depois de uma madrugada de trabalho. Nunca fora bom pescador, nem de homens, nem de mulheres, e riu de si mesmo com a péssima piada. Lembrou de Santiago, o velho pescador cubano imortalizado por Hemingway e que ficou oitenta e cinco dias sem pegar um peixe.  Quando fisgou um enorme marlim-azul, este foi devorado por tubarões. Santiago chegou à praia depois de dois dias e duas noites, cansado, exausto e com apenas um esqueleto para comprovar seu feito. Azar? Ele não acreditava nestas coisas de azar, de sorte, de tarô, de horóscopo, de almas gêmeas. Talvez ele fosse incompatível com as mulheres que se aproximavam dele - ou das mulheres das quais se aproximava. 

Estava novamente só. A brisa cálida lhe acariciava o rosto, mas a escuridão lhe dominava. Nem a luz do meio da tarde era capaz de desamarrar a feição fechada e amuada. O silêncio era cortado apenas pelo leve balançar dos barquinhos e das pequenas ondas batendo na mureta que ladeava o calçadão naquele braço de mar, na entrada do porto dos pescadores. Seu interior ainda estava desarrumado, entristecido pelo silêncio agressivo dela. Viajara na vã tentativa de se desvencilhar de um breve passado que lhe incomodava. Sucumbira diante do fracasso do relacionamento. Mais uma vez não deu certo, repetia à exaustão ao longo dos dias. Os repetidos desastres lhe cansavam a ponto de lhe afetar fisicamente. Perdera três quilos desde que ela com secura e frieza lhe dispensara. O dilema se apresentava novamente e imaginara que a perseverança fosse uma prova de amor capaz de demovê-la da ideia, de tirá-la do isolamento, como se ele fosse despachado para uma ilha distante, um exílio imposto por ela, uma censura que mais se assemelhava a um campo de refugiado supervisionado pela ONU. 

Ela se recusara a atender suas ligações, recusara seus presentes, seus mimos, seus gestos carinhosos, seus pedidos de desculpas, sua ida em vão até o portão da casa dela na serra e da qual ela jamais soube, pois diante da campainha, ele recolheu a mão, enfiou a no bolso e recuou cabisbaixo. Mudou de ideia no dia seguinte. Resolveu escrever uma longa carta, certo de que ela a leria. Então por que perder tempo escrevendo?, perguntou-se várias vezes. Porém, insistente, escreveu a carta. Trazia consigo no bolso, dentro de um belo envelope bege, comprado especialmente e escolhido na melhor papelaria da cidade. Ela gostava de receber cartas escritas à mão. Custou-lhe escrever, teve que caprichar na letra, a mão doeu-lhe. Não estava mais acostumado a escrever à mão. Não escrevia longos textos à mão desde as provas do mestrado. O esforço vai ser recompensado, repetia silenciosamente em forma de mantra motivacional. Insistiria mais uma última vez. Era preciso. Era preciso debelar a escuridão que lhe acometia e lhe murchara. 

Tirou uma mariola do bolso e deu duas mordidas. Olhou fixamente o horizonte e suspirou, deixando o aroma do sal invadir-lhe as narinas. Os barquinhos permaneciam em suave dança com as ondas que lhes conduziam. A dança era cadenciada, ritmada, como a vida. No bolso de trás da calça estava a carta, num envelope agora amassado. Olhou para a caligrafia e o nome dela. De uma vez, sem hesitar, rasgou a carta ao meio. Levantou-se e lançou as duas metades na primeira lata de lixo que avistou.


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Um atentado à liberdade de expressão



O jornal francês Charlie Hebdo sofreu um ataque terrorista no dia 7 de janeiro de 2015 com a morte de 12 chargistas e profissionais que ali trabalhavam. O ataque gerou uma comoção mundial tanto em relação ao fato de tratar de um ataque terrorista, como ao fato simbólico de se tratar de um ataque à liberdade de expressão, conceito tão importante e fundamental para as verdadeiras democracias ocidentais. Ponho ênfase na palavra verdadeira, pois há inúmeros regimes que se passam por democráticos, mas na verdade não o são, como a Venezuela, por exemplo.

Li diversos artigos sobre o atentado, opiniões das mais variadas e de correntes opostas antes de escrever este post. Escrevi, corrigi, apaguei. Escrevi de novo, repensei e novamente apaguei. Tinha desistido de opinar sobre o tema, mas hoje pela manhã veio-me a necessidade de não me calar. 

Eu não sou Charlie e não concordo com a linha editorial adotada pelo jornal. O Charlie era antes de tudo um jornal panfletário de anarquistas que não respeitam nada, não importando se o assunto é religião, política, esportes, filosofia, literatura. Achavam-se todo poderosos, acima do bem e do mal e é exatamente neste ponto que reside o erro. A liberdade de expressão é garantia fundamental, mas não é um direito ilimitado.

O Charlie, na minha modesta opinião, ultrapassa a fronteira da liberdade de expressão protegida como direito humano, para invadir o campo da calúnia, da injúria, da difamação, do achaque descarado. E um estado de direito não pode amparar tal conduta.

Não estou a justificar o ataque terrorista, pois a violência não se justifica em hipótese alguma, salvo nos casos de legítima defesa e estado de necessidade. Mas parece-me que houve exagero no conteúdo do Charlie a ponto de perder a credibilidade, a ponto de acirrar ainda mais a intolerância. Em outras palavras, a conduta do Charlie foi um tiro pela culatra. Alegava proteger a liberdade de expressão, mas suas ações provavelmente terão consequências em sentido contrário.

É notório que os regimes islâmicos são mais conservadores e com viés mais intolerante. Não é possível compreender a lógica islâmica sob o ponto de vista ocidental. O sistema erige-se com base em princípios muito diversos dos princípios ocidentais. O que é preciso - e isto é fundamental - é garantir que os princípios ocidentais e os direitos fundamentais não sejam diluídos ou contaminados pela intolerância.

E quando me refiro a intolerância, é importante que olhemos para dentro do nosso país. A liberdade de expressão e de opinião deveria garantir que eu pudesse ler Monteiro Lobato sem ser rotulado de racista. A liberdade de expressão e de opinião deveria garantir que eu expusesse uma opinião contrária ao casamento civil de pessoas do mesmo sexo sem ser considerado homofóbico. A liberdade de expressão precisa garantir o direito à crítica, o direito a expor ideias de forma clara sem a censura do politicamente correto!

O nosso país tem se tornado intolerante com as ideias que fogem do lugar comum. O direito à crítica tem sido sufocado e esta conduta é um sinal claro de intolerância, um sinal claro de que a liberdade de expressão sofre ameaças no nosso suposto regime democrático.